Associação
Bento de Jesus Caraça



Machado de Castro

Manuel Mendes


Manuel Mendes traça na Introdução deste volume o programa de trabalho que o levou a produzir este interessante texto. Os dois primeiros parágrafos fazem-nos antever o que se seguirá:

Nada mais simples e curto de contar do que a biografia de Joaquim Machado de Castro, tão reduzidos são os conhecimentos que temos da sua vida, ou melhor, tão pouco de anedótico conservou a memória dos homens a respeito da sua longa existência de noventa e um anos.

Nada de pitoresco, pois, irá o leitor encontrar nesta corrente narrativa. Vistas e lidas as obras de Machado de Castro e com o conhecimento de quase tudo o que sobre ele se tem publicado, fizemos o material destas páginas. É um pequeno e sucinto quadro, uma vista panorâmica da vida e da obra de um dos maiores artistas portugueses, de um grande escultor. Procurámos, ainda, pintar numa aguada rápida o cenário em que essa vida e essa obra se desenrolaram, tão intimamente ligadas, tão de acordo, como se fossem um só bloco.

O trabalho de Manuel Mendes é, ainda hoje actual, não parecendo haver, com excepção de um texto de 2008 de Miguel Figueira de Faria, nenhuma outra biografia de Machado de Castro. Há, isso sim, várias referências anteriores que o autor cita e de que se socorre abundantemente.

O capítulo I, O século XVIII caracteriza o ambiente artístico, económico, social e político em que Machado de Castro nasceu e em que desenvolveu a sua vida. É um quadro negativo que Manuel Mendes descreve, iniciando-se pelo final do século anterior em que a sociedade que se segue à restauração da independência é descrita de forma desencantada e muito crítica, como uma sociedade sem projecto nem estratégia, sem grandeza nem futuro.

A sociedade dir-se-ia um charco de águas paradas, sombrias, sobre o qual se enovelam torvelinhos de vida, desconexos e improfícuos.

A transição para o século XVIII vê chegar grandes proventos do Brasil que não se traduziram numa fonte desenvolvimento do país, e pelo contrário, são desperdiçados numa grande quantidade de construção e de elaboração do obras de arte de qualidade muito duvidosa e, as mais das vezes de um total afastamento das necessidades da sociedade portuguesa.

Lisboa, que então vivia no luxo e na opulência, é descrita por estrangeiros como uma cidade de mendigos. diz Mendes, citando António Sérgio.

Um aspecto, porém, é salvaguardado por Manuel Mendes como uma semente profícua: a arquitectura civil que, para além das construções militares, religiosas ou de grande fausto, inicia um trabalho planeado e de futuro na construção de habitação, desde logo para classes abastadas, mas também, com início no período do Marquês de Pombal, na construção de habitação para a população, na construção da cidade.

Um outro aspecto relevante é o do aparecimento de uma escola de estatuária em Mafra, por efeito da construção do Convento.

O Capítulo II, O Homem e o Escultor é dedicado à descrição da vida de Machado de Castro até ao convite para a realização da estátua equestre de D. José em Lisboa. Desde os primeiros tempos em Coimbra, onde nasceu, que, com seu pai, também escultor, se iniciou nas técnicas da escultura em madeira e em barro. Muda-se para Lisboa aos 16 ou 17 anos´ e continua a trabalhar em madeira, barro e gesso até entrar na escola de José de Almeida onde se inicia na escultura em pedra. Aos 25 anos desloca-se para Mafra onde a construção do Convento de Mafra foi uma excelente escola, quer para arquitectos, quer para escultores. Aí ficou 14 anos sob a orientação do escultor italiano Alexandre Giusti.

Manuel Mendes reflete neste capítulo sobre o complemento da sua formação escolar inicial numa escola jesuíta em Coimbra obtido em Mafra, quer pela imersão num ambiente artístico de topo em Portugal na época, quer nas condições humanas em que a construção do convento assentou.

Citando Manuel Mendes,

Até que ponto a convivência com estes dramas criou ou avivou nele o sentido angustiado e humano que transparece numa parte das obras do escultor e em muitas páginas dos seus escritos, não sabemos como possa haver notícia. No entanto ¿não será fugir muito ao que é razoável e lógico pensar que um temperamento já de si tão propenso a doer-se e a recalcitrar com as amarguras e injustiças da vida, como ele sempre se revelou, tenha sofrido com desgosto o escuro contraste entre a dor do negro e miserável formigueiro dos que lavravam e içavam aquel montanha de pedra, e a alvura daquelas paredes novas, indiferentes e frias, enormes como um pesadelo?

O Capítulo III, Pombal e o Terramoto analisa as profundas mudanças ocorridas em Portugal na segunda metade do século XVIII como consequência do terramoto de 1755 e das profundas reformas introduzidas pelo Marquês de Pombal, já muito influenciadas pelo iluminismo europeu. De Mafra vieram Eugénio dos Santos que desenhou para o Marquês uma cidade de futuro sobre os escombros da cidade medieval e, como o capítulo seguinte ilustra, Machado de Castro que vai produzir a estátua equestre de D. José, como remate dessa Lisboa moderna que nascia.

O Capítulo IV, A Estátua Equestre descreve com bastante detalhe todo o processo que levou à edificação por Machado de Castro da estátua equestre de D.José que foi colocada na Praça do Comércio, então novo nome para a praça anteriormente designada Terreiro do Paço (que continua hoje a ser conhecida também por esse nome).

Este capítulo socorre-se frequentemente da obra de Machado de Castro, disponível digitalizada na Biblioteca Nacional, Descripção Analytica da Execução da Real Estátua Equestre do Senhor Rei Fidelíssimo D. José I.

O convite para apresentar propostas de realização da estátua foi apresentado a Machado de Castro e a um escultor italiano (Andréa Imbrol), num contexto em que o aspecto arquitectónico do monumento estava já previamente definido por Eugénio dos Santos. A proposta apresentada em maquete por Machado de Castro ao rei foi a preferida por este. No livro referido, abundantemente citado por Manuel Mendes, se descreve detalhadamente o conjunto de estudos necessários para a execução da obra. Convidado em 1770 para apresentar uma proposta, Machado de Castro vê o monumento inaugurado em 1775.

O Capítulo V é dedicado a Os presépios. Para além da estatuária em que Machado de Castro trabalhou em Mafra, na estátua equestre de D. José — a sua obra prima — e em várias contribuições que vai deixando espalhadas pelo território nacional, há um aspecto da sua obra menos erudito, mas de grande sucesso popular que são os seus presépios de barro, do qual o mais celebrado é o da Basílica da Estrela em Lisboa. Os presépios eram, em geral encomendas da casa real, de nobres ou de outros cidadãos com poder económico e permitiam conceber e realizar conjuntos com até centenas de figuras, cada uma esculpida em barro individualmente. Permitiam a quem os projectava, neste caso, Machado de Castro, criar, para além das figuras tradicionais, muitas e variadas pequenas cenas da vida popular que têm mais a ver com a visão do artista sobre a sociedade de então, que com uma representação religiosa do nascimento de Cristo.

Um aspecto importante destas obras é que, pela sua complexidade, apenas são possíveis porque são desenvolvidas por equipas extensas de pessoal já treinado ou de aprendizes em princípio de carreira, criando condições para Machado de Castro montar oficinas de escultura que não se esgotavam apenas na produção, quase industrial de presépios, mas também numa actividade de formação artística de futuros escultores. Nesse contexto, percebe-se que, embora a quase totalidade das figuras sejam pequenas obras de grande qualidade, há algumas que, certamente Machado de Castro reservava para si, e que não eram, em geral, as figuras principais do presépio, mas aquelas que lhe permitiam ter maior criatividade. Sobre este assunto, pode ser visto um programa da RTP sobre o presépio da Estrela, na série Visita Guiada que descreve muitas dessas figuras "laterais".

O capítulo aproveita ainda a contradição entre o sucesso do escultor nesta actividade e as frustrações por não conseguir ultrapassar as limitações que a sociedade portuguesa da época lhe impõe no desenvolvimento da sua obra escultórica mais erudita, para referir alguns aspectos da sua personalidade e alguns textos que insistiu em escrever e deixar como testemunhos das suas preocupações e desilusões.

A velhice e a morte, é tratada no Capítulo VI. Diz Manuel Mendes:

¿Em que mais ocupou a vida, este artista que tinha atingido a velhice? Em continuar a trabalhar, o que fez incansavelmente, sem desfalecimento, até que a doença e a morte o vieram de todo aquietar.

Manuel Mendes, citando vários autores, dá o devido relevo ao facto de que a casa onde habitava Machado de Castro ficava no andar superior do edifício onde existia a oficina (laboratório como ele gostava de referir) onde coordenava o conjunto de escultores e aprendizes que com ele trabalhavam e dele aprendiam. Situada na zona do Chiado, já sobre o Rio e aquilo que hoje é o Cais do Sodré, deveria ter as condições que ele necessitava para o seu trabalho e a sua meditação. Nessa oficina teriam sido concebidas obras da parte final da sua vida e que existem, por exemplo na Basílica da Estrela, no Palácio da Ajuda e várias outras obras, algumas polémicas, que o autor refere.

Manuel Mendes inclui o texto completo de uma carta de Machado de Castro a um destinatário desconhecido em que ele desabafa sobre as injustiças de que sente alvo e que mostra bem a força e a impotência com que se revolta com a envolvente que o cerca.

Em 1814, já com 83 anos,

chega, finalmente a consagração oficial. É admitido como sócio da Academia Real das Ciências — o que em alto grau o lisonjeia.

Na Conclusão, Manuel Mendes lamenta a relativa pequena quantidade de escultores reconhecidos na história da arte portuguesa por contraposição, por exemplo, a poetas. Um outro aspecto é a análise do enquadramento que, sendo a escultura pouco desenvolvida em Portugal, permitiu a Machado de Castro desenvolver-se como artista, tendo ainda em conta que o escultor nunca saíu de Portugal e, portanto, nunca contactou directamente com os grandes centros europeus de arte e, em particular de escultura. Esse enquadramento, para além da influência do escultor José de Almeida com formação em Itália, foi a escola montada em Mafra pelo italiano Alexandre Giusti. O aspecto de Machado de Castro ter desenvolvido todos os esforços para criar uma Escola que teve frutos e formou um conjunto de continuadores completa a análise de Manuel Mendes.



GSA