António Câmara oferece neste livro uma introdução à genética muito bem construída e que vai um pouco adiante das introduções habituais em livros de divulgação científica sobre o tema. Claro que a genética evoluiu tremendamente a partir dos anos 40 e sobretudo cinquenta do século XX, com a descoberta da dupla hélice do ADN e com todas as possibilidades abertas mais tarde, já na transição para o século XXI, pela sequenciação e manipulação genéticas.
ABC da Genética, escrito em 1941 (a publicação é de Janeiro de 1942) faz uma análise cuidada e rigorosa, apesar de orientada para não especialistas e recorrendo a muitas analogias, para melhor explicar os conceitos introduzidos, daquilo que hoje é denominado «Genética clássica ou Mendeliana».
Este livro surge, portanto numa fase de intenso desenvolvimento da genética com a publicação de sucessivos avanços no conhecimento. O entusiasmo dos cientistas da altura transparece na escrita de António Câmara e nas perspectivas que vai abrindo ao longo do livro. Como exemplo, neste trecho do segundo capítulo:
Breve notaremos que o caminho que nos parecera agora suave, iluminado pela hipótese mendeliana, estará embaraçado com obstáculos, que novas e novas complicações irão surgindo, tornando obscuro o que desejávamos ver claro. Mas também reconhecemos que a genética, em sucessivas e incansáveis vitórias tem dominado constantemente esses obstáculos, e que, a-pesar-de tudo, o caminho continua a ser percorrido, cada vez com mais conhecimento e cada vez com mais segurança.
O primeiro capítulo, A fábrica da hereditariedade começa por apresentar o fenómeno da hereditariedade com exemplos concretos da sua manifestação e evolui para colocar na célula o mecanismo que dá suporte à hereditariedade. Neste capítulo é feita uma breve descrição da constituição de uma célula e do processo de divisão celular. São ainda referidos os cromossomas e o seu papel na reprodução da célula. O capítulo analisa ainda o comportamento diferente, em relação às restantes células dos gametas, as células envolvidas na reprodução.
Neste primeiro capítulo é ainda referido a importância da mosca do vinagre para o estudo da hereditariedade e da genética, tendo em vista a simplicidade da estrutura dos seus cromossomas que permitem usar esse insecto como modelo de estudo da hereditariedade.
No capítulo II, Como se principiou a conhecer o maquinismo da hereditariedade, faz-se referência às experiências e descobertas de Mendel publicadas em 1866 e esquecidas durante 34 anos. Em 1900, de forma independente, três cientistas, De Vries, Correns e Tschermak chegam a resultados semelhantes aos de Mendel e o trabalho precursor deste é reconhecido. Neste capítulo mais alguns aspectos da história da genética são abordados, sendo referidos mais alguns nomes que, no início do século XX, estiveram na base do rápido desenvolvimento da genética. Mendel tinha trabalhado sobre a planta da ervilha. No entanto, rapidamente a mosca do vinagre passou a ser o modelo base para o estudo desta matéria, graças à facilidade de manipulação e ao facto de poder chegar a ter 25 gerações por ano. O facto de a mosca do vinagre ter apenas quatro pares de cromossomas, foi também importante, uma vez permitia evitar complexidades maiores nas múltiplas experiências que iam sendo feitas.
No segundo capítulo é ainda mostrado com algum detalhe a metodologia usada por Mendel para as suas experiências, utilizando ainda as ervilhas, sobre as leis de transmissão de caracteres em sucessivas gerações das plantas. Começavam a surgir os primeiros resultados que, não só permitiam compreender o fenómeno, como, em paralelo, utilizá-lo na agricultura. Um aspecto fundamental é o da existência de caracteres dominantes e recessivos.
O capítulo III, O impulso dado pelo Mendelismo vem mostrar como as teorias mendelianas expostas no capítulo anterior e mais adiantadas neste, explicam muitas ocorrências no que diz respeito às características de indivíduos e suas descendências no que diz respeito a pares de caracteres dominantes e recessivos. Na continuação é considerado o caso em que, em vez de considerarmos um par de caracteres, estamos perante a existência de vários pares de caracteres. Num caminho que era recente, estuda-se a função dos genes em todo o mecanismo e a sua localização nos cromossomas.
No capítulo IV, Factores que colaboram e factores que destroem aprofunda-se o estudo da hereditariedade, mostrando a influência de factores mais complexos, como a existência de genes que interagem entre si, condicionando a transmissão de caracteres entre gerações, e a existência do que o autor chama caracteres quantitativos em que as opções não são apenas entre duas características diferentes (cor branca ou vermelha das flores, por exemplo) mas um contínuo de valores (como por exemplo, a altura de uma planta). Este capítulo estuda ainda os efeitos de mutações em genes que os transformam em fonte de deficiências para os indivíduos que podem chegar à sua própria inviabilidade. É particularmente referido o processo pelo qual esses genes «letais» podem estar inactivos numa (ou mais) gerações e manifestar-se em indivíduos filhos de dois progenitores com esses genes.
O capítulo V, A residência do gene é dedicado a mostrar as evidências de que os genes estão de algum modo alojados nos cromossomas. Recorde-se que a genética molecular não existia ainda ou, quanto muito, estava no início do seu desenvolvimento. Por isso, o relacionamento descoberto e no livro descrito, entre os genes e os cromossomas é um exemplo acessível para compreender como a ciência se vai desenvolvendo, com o aparecimento de hipóteses explicativas de fenómenos e a procura da sua confirmação. Neste capítulo, como já atrás o fez, o autor tem a preocupação de expor a história do desenvolvimento científico nesta área, mostrando os sucessivos passos que construíram um modelo explicativo. Ainda neste capítulo estudam-se os fenómenos da hereditariedade ligada ao sexo por via de certos genes estarem incluídos num dos cromossomas X ou Y ligados à definição do sexo do indivíduo.
O último capítulo, A certeza de que a residência do gene é o cromossoma mostra as evidências que, de facto, os genes estão colocados nos cromossomas e, mais do que isso, que a localização de cada um deles é definida, de tal modo que é possível determinar determinar a cartografia genómica dos cromossomas. O facto de que cada cromossoma alberga um determinado número de genes leva também a que os que estão no mesmo cromossoma não tenham uma evolução totalmente independente entre si, uma vez que a sua selecção e transmissão são feitas em conjunto. Estamos aqui, neste livro, na fronteira do que então se sabia sobre a genética. E é muito interessante, seguir o caminho do autor a provar-nos, não só que os genes residem nos cromossomas, mas também que é possível localizá-los dentro dos cromossomas, ainda que, naquela altura de modo indirecto.
Na Conclusão, para além de uma apreciação global sobre o material exposto no livro, o autor mostra-nos a ignorância de aspectos fundamentais, mostrando a motivação para os caminhos que a genética iria seguir no resto do século XX, rasgando os horizontes, então limitados pela falta de recursos tecnológicos adequados que estavam a evoluir em paralelo. Este livro é, também por isso, muito interessante para quem conhece os desenvolvimentos posteriores da genética molecular, por mostrar as motivações que potenciaram a sua grande evolução.
GSA