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Bento de Jesus Caraça



Conceitos Fundamentais da Matemática Vol. I

Bento de Jesus Caraça

O livro Conceitos Fundamentais da Matemática é uma obra excepcional do Professor Bento de Jesus Caraça. Inicialmente foram publicados dois volumes na Biblioteca Cosmos (os números 2 em 1941 e 18 em 1942 da colecção) aos quais se deveria ter seguido um terceiro volume que o autor preparou mas não chegou a incluir na colecção que ele próprio dirigia. Por isso, quando se referem os Conceitos, é normal ter em conta a obra completa que foi publicada integrada num único volume, pela primeira vez em 1951, três anos após a morte de Bento de Jesus Caraça e posteriormente numa edição totalmente renovada da Gradiva. Juntam-se os dados dessas duas edições:

Para compreender a importância desta obra no conjunto do trabalho de Caraça, ter-se-á de analisar o seu pensamento bem explanado em vários trabalhos. Da sua conhecida conferência de 1933, A Cultura Integral do Indivíduo, Problema Central do nosso Tempo, podem retirar-se os seguintes dois trechos que apontam como Bento de Jesus Caraça considerava importante a cultura de cada indivíduo no seio das massas, para o seu correcto posicionamento no caminho pela construção de uma sociedade mais justa.

O que é para Caraça um homem culto?

É aquele que:
• Tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence;
• Tem consciência da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência como ser humano;
• Faz do aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da vida.

E qual a importância da cultura na luta das massas por uma sociedade mais justa?

A vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento momentaneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença; significa que se deu um novo passo no sentido de subtrair o colectivo à tirania do individual; sentem-no bem as massas que, nessas épocas de comoção dos fundamentos da sociedade, se lançam, numa explosão de entusiasmo, ao assalto do corpo decrépito e parasitário que sobre elas vive.
Mas a sua falta de preparação cultural, o não reconhecimento de si mesmas como um vasto organismo vivo e uno, torna-as incapazes de levar a sua obra mais além da destruição do passado; impossibilita-se de proceder à construção da ordem nova que a sua revolta preparou.
E então dá-se, no dia seguinte ao do triunfo, a sua abdicação, num grande gesto de renúncia - essa obra de reconstrução, é um novo grupo, uma nova classe, mas não a colectividade inteira, que a vai empreender sob a égide da bandeira que presidiu à vitória.

Oito anos depois, em 1941, Bento de Jesus Caraça, tendo aceite com entusiasmo, no ano anterior o convite para dirigir a colecção Biblioteca Cosmos, no Prefácio do primeiro volume da colecção (O Homem e o Livro) questiona-se Caraça:

A que vem a Biblioteca Cosmos?

E, de imediato responde:

Podemos resumir nestas poucas palavras os seus intuitos — dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos aquilo que as condições materiais de vida e as necessidades profissionais da especialização tornam sempre difícil, e por vezes mesmo impossível, adquirir — uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas.
Quando falamos em tornar acessível, entendemo-lo de duas maneiras — pelo preço dos volumes, o qual será tão baixo quanto possível, e pela forma de tratar os problemas, que será simples, concisa, em linguagem ao alcance de todos.

Caraça, neste mesmo Prefácio, tece um programa de trabalho para a colecção que vai ser igualmente, como veremos adiante, a concepção estratégica dos Conceitos.

Mas a questão não se limita a este simples aspecto do direito à cultura; ela põe-se, também, no campo da possibilidade. É possível pôr ao alcance de todos a cultura geral? não existem porventura, no conjunto das ideias fundamentais da estruturação intelectual, domínios não acessíveis, ou só acessíveis a iniciados? Não é verdade que, como se vê afirmar com frequência, vulgarizar é sempre abaixar?
Entendamo-nos. Em cada ramo do conhecimento há o que é do domínio do especialista e o que é do domínio geral, aquilo que só uma vida inteira de trabalho consegue apreender (quando o consegue) e aquilo pelo qual esse ramo entronca na corrente geral das ideias e da civilização.
Para darmos um exemplo tirado duma ciência que nos é familiar, diremos que o conhecimento da moderna teoria da integração, da teoria das matrizes ou da das estruturas é com o matemático-técnico; que o conhecimento das ideias mestras da Análise Infinitesimal e sua filiação na história da Física e da Filosofia é com o matemático-homem-comum, como com o tipógrafo, o médico ou o agricultor. Do mesmo modo, a maneira de abrir a terra, de semear e colher é com o agricultor-técnico, ao passo que o significado da agricultura e dos seus problemas na vida social é com o agricultor-homem-comum como com o médico, o matemático e o tipógrafo.
O que se pretende vulgarizar é, precisamente, o que pertence ao domínio geral e aí não há nada que não possa ser apreendido pelo comum dos homens. é a eles que é dirigida esta Biblioteca. é pensando neles, e nos diferentes graus de cultura geral e profissional que possam ter, que se procura a síntese do máximo de rigor com o máximo de simplicidade. é pensando neles, nos seus direitos e nas suas possibilidades, que nos propomos vulgarizar sem deturpar nem abaixar.

Sobre este importante livro da literatura científica e cultural portuguesa, inclui-se ainda o prefácio do próprio autor, no primeiro volume que, na sequência do pensamento atrás exposto, define algumas linhas de orientação para si, como autor.

Duas atitudes em face da Ciência

A Ciência pode ser encarada sob dois aspecios diferentes. Ou se olha para ela tal como vem exposta nos livros de ensino, como coisa criada, e o aspecto é o de um todo harmonioso, onde os capítulos se encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la no seu desenvolvimento progressivo, assistir à maneira como foi sendo elaborada, e o aspecto é totalmente diferente — descobrem-se hesitações, dúvidas, contradições, que só um longo trabalho de reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições.

Descobre-se ainda qualquer coisa mais importante e mais interessante: — no primeiro aspecto, a Ciência parece bastar-se a si própria, a formação dos conceitos e das teorias parece obedecer só a necessidades interiores; no segundo, peto contrário, vê-se toda a influência que o ambiente da vida social exerce sobre a criação da Ciência.

À Ciência, encarada assim, aparece-nos como um organismo vivo, impregnado de condição humana, com as suas forças e as suas fraquezas e subordinado às grandes necessidades do homem na sua luta pelo entendimento e pela libertação; aparece-nos, enfim, como um grande capitulo da vida humana social.

A atitude que será aqui adoptada

Será esta a atitude que tomaremos aqui. A Matemática é geralmente considerada como uma ciência à parte, desligada da realidade, vivendo na penumbra do gabinete, um gabinete fechado, onde não entram os ruídos do mundo exterior, nem o sol, nem os clamores dos homens. Isto, só em parte é verdadeiro.

Sem divida, a Matemática possui problemas próprios, que não têm ligação imediata com os outros problemas da vida social. Mas não há dúvida também de que os seus fundamentos mergulham tanto como os de outro qualquer ramo da Ciência, na vida real; uns e outros entroncam na mesma madre.

Mesmo quanto aos seus problemas próprios, raramente acontece, se eles são de facto daqueles grandes problemas que põem em jogo a sua essência e o seu desenvolvimento, que eles não interessem também, e profundamente, a corrente geral das ideias.

O leitor encontrará a justificação destes pontos de vista nos capítulos que se seguem, Neste primeiro volume estão agru- gados aqueles conceitos básicos que dizem respeito à noção de quantidade; nos seguintes serão estudados os que têm por tema as noções de lei, de evolução e de classificação.

Ainda sobre este livro existe um conjunto de interessantes textos listados nesta Bibliografia

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O conjunto de toda esta obra (dois volumes publicados na Biblioteca Cosmos e a edição posterior do conjunto dos três volumes inicialmente previstos) mantém-se actual pela forma como o seu conteúdo é exposto e contextualizado e pela sua qualidade global.

O capítulo I é dedicado a O problema da contagem em que o conceito de número é introduzido com base na necessidade humana da contagem. O capítulo tem duas partes. A primeira é dedicada aos Números naturais e a segunda introduz as Operações. Desde o início do livro, se entende que a matemática é introduzida caminhando de aspectos e necessidades concretas da vida quotidiana para os conceitos mais abstractos, procurando mostrar como esse caminho ajuda a compreender os caminhos que se seguiram e a necessidade, para aprofundar as questões, de uma abordagem mais abstracta.

No capítulo, a par com a introdução dos números naturais, do zero, dos inteiros, do conceito de infinito, é mostrado o caminho mental que sucessivas gerações de humanos vão trilhando para conceber esses conceitos com base nas necessidades da vida quotidiana e as alterações da vida económica dos povos primitivos.

Na segunda parte do capítulo estudam-se as operações fundamentais sobre os números inteiros. Caraça analisa, não só as operações mais clássicas, adição, subtracção, multiplicação e divisão, mas também a potenciação, radiciação e logaritmação. Dessa forma introduz as operações directas como a adição e inversas, como a subtracção. Mostra ainda, que uma operação directa como a potenciação pode ter mais de uma operação inversa. No estudo das operações apresenta também algumas das suas propriedades. Como se está no conjunto de números inteiros, surgem naturalmente limitações aos números sobre os quais se podem aplicar as operações inversas. Por exemplo, na subtracção o dividendo tem de ser maior ou igual ao diminuidor, na divisão pode ser necessário definir o resto e na operações inversas da potenciação, surgem outras limitações. Começa assim a construir-se a necessidade de alargar o conceito de número.

Do mesmo modo a introdução do 0 em algumas operações conduz a situações de resultado não definido pelo que é necessário alargar as definições anteriores das operações com o cuidado de não introduzir incoerências. Continua a verificar-se a procura do autor de mostrar os caminhos por onde se desenvolveu a matemática em vez de apresentar uma construção acabada sem analisar os caminhos que aí conduziram.

O capítulo II, O problema da medida é a oportunidade de introduzir o campo dos números racionais. A primeira parte é dedicada à Construção do campo racional, enquanto que a segunda estuda As propriedades do campo racional. A primeira parte analisa a necessidade de medir e a de ter unidades de medida das diversas grandezas, reconhecidas como unidades padrão. Antes de avançar para a apresentação dos números racionais o autor elabora um pouco mais sobre as questões ligadas à necessidade e à metodologia da medida para estabelecer um referencial adequado ao que se segue. E o que se segue é o reconhecimento da dificuldade de exprimir toas as medidas apenas com números inteiros, levando à necessidade da introdução dos números racionais que aparecem explicitamente como um alargamento do conjunto dos números inteiros pela introdução dos números fracionários.

Na segunda parte do capítulo estudam-se as propriedades dos números racionais e a adaptação das operações previamente definidas para os inteiros para este novo campo, mantendo a compatibilidade com a estrutura anteriormente definida. Como acontecia já com a primeira parte deste capítulo, o desenvolvimento das propriedades e, de algum modo, a sua justificação é feita aproveitando a homologia entre os números racionais e o comprimento de segmentos de recta, por um lado, e a extensão das definições e propriedades das operações definidas previamente para os números inteiros.

O capítulo III é designado por Crítica do problema da medida e vem colocar em causa, na sua primeira parte (Crítica), o caminho feito até aqui em que implicitamente se admitia que dois segmentos de recta são sempre comensuráveis, o que é falso. Por outras palavras, considerando a homologia entre números e comprimentos de segmentos de recta, há números que não podem ser representados como m/n em que m e n são ambos inteiros, isto é, há números que não são racionais.

Na segunda parte do capítulo (Construção) Caraça segue uma metodologia que já tinha utilizado antes para resolver este problema. Procura identificar o problema que surgiu de forma a poder ultrapassá-lo mantendo coerência com o edifício anteriormente construído. Surgem assim os números irracionais que fazem parte, em conjunto com os racionais já estudados de uma classe mais abrangente, a dos número reais.

No capítulo IV, Um pouco de história surge uma das principais originalidades deste livro, com uma contextualização dos problemas dos números até aqui apresentados, na história do pensamento humano na Grécia antiga. Aqui, os problemas matemáticos e a sua relação com as concepções filosóficas que se iam definindo, são analisados com cuidado e procurando transmitir ao leitor que a matemática que se desenvolve não é independente das grandes visões filosóficas da época em que esse desenvolvimento se dá. O exemplo do problema da comensurabilidade e, através deste, da concepção de infinito e, como se verá mais tarde de continuidade mostram como estas concepções condicionam profundamente a evolução da matemática na Grécia.

Do mesmo modo se refere como o nascimento e a expansão do imperialismo ateniense vem ajudar a bloquear novas evoluções matemáticas durante séculos.

No capítulo V, O Campo Real, Bento de Jesus Caraça, voltando à exposição de carácter mais "matemático" vai contextualizar os números reais numa evolução que se tinha iniciado com os números inteiros e que, na exposição pela qual optou no texto, vai ainda ser completada. Referindo que os números racionais, tal como os inteiros, constituem um conjunto infinito numerável e que apenas com a introdução dos irracionais se encontra um conjunto de números infinito e contínuo, tal como a recta, coloca em perspectiva os diversos tipos de números e a sua relação com o contínuo mais intuitivo da recta.

O autor chama a atenção para o facto de muitos números irracionais serem representáveis na forma de raiz índice n de um número a, resolvendo também o problema de as raízes de números inteiros e racionais não serem, na generalidade dos casos, números do mesmo tipo. Com a introdução dos números irracionais, já é sempre possível obter os resultados dessas raízes. Chamando a atenção para que nem todos os reais podem ser representados como raízes, aproveita para introduzir o número π, e fazer uma pequena discussão sobre a importância deste número.

O capítulo termina com uma brevíssima referência às propriedades das operações sobre os números reais, chamando a atenção para o facto de ainda não estar resolvida a questão da subtracção em que o aditivo é menor que o subtractivo, abrindo assim caminho para a introdução dos números relativos no capítulo seguinte.

O último capítulo, deste volume, Números relativos começa com a constatação de que continua a ser não definido o resultado de uma operação de subtracção em que o subtractivo seja maior que o aditivo. E, como já foi feito ao longo do livro, constata-se a necessidade de alargar o conceito de número para incluir outro tipo de números — os números relativos. do mesmo modo que foi feito em capítulos anteriores, procede-se ao alargamento das propriedades das operações para incluir de forma coerente este novo conjunto de números. Os números relativos incluem os positivos, os negativos, e o zero. Na parte final, o autor prepara já o reconhecimento da necessidade de incluir novos números que permitam algo que se constata que é ainda não definido, isto é, uma raíz de um número negativo.

Tal será abordado no segundo volume dos Conceitos Fundamentais da Matemática, número 18 da colecção Biblioteca Cosmos.

É interessante constatar que Bento de Jesus Caraça nas Lições de Álgebra e Análise, editadas pela primeira vez em 1935, cerca de sete anos antes dos Conceitos, ao contrário do que aqui fez, introduziu os números relativos logo após os números racionais.

GSA