Associação
Bento de Jesus Caraça

A Biblioteca Cosmos, obra de Bento de Jesus Caraça


Bento de Jesus Caraça, personalidade riquíssima da cultura e ciência portuguesas, tem duas linhas de actividade ao longo da sua vida, que definem todo o seu trajecto. Por um lado, a sua preocupação com a população trabalhadora profundamente explorada e que vê muito dificultado o acesso à cultura e à própria formação escolar básica, o que o leva a contribuir por todos os meios para melhorar a sua situação. Por outro, no contexto da sua actividade como professor, o privilegiar do ensino e a divulgação na sua actividade profissional, no intuito de contribuir para a formação científica, cultural e humana dos seus alunos, quer na Universidade, quer nas actividades de formação e divulgação cultural.

Essas duas perspectivas não eram afinal distintas no seu pensamento cedo compreendendo que era fundamental aumentar o nível cultural dos trabalhadores e do povo porque isso seria uma base fundamental para uma mudança revolucionária da sociedade. Na sua célebre conferência de Maio de 1933, A Cultura Integral do Indivíduo, problema central do nosso tempo afirma:

A vitória de uma ideia revolucionária significa, na época em que se dá, um acomodamento momentaneamente estável, mais perfeito que o anterior, entre as forças em presença; significa que se deu um novo passo no sentido de subtrair o colectivo à tirania do individual; sentem-no bem as massas que, nessas épocas de comoção dos fundamentos da sociedade, se lançam, numa explosão de entusiasmo, ao assalto do corpo decrépito e parasitário que sobre elas vive.

Mas a sua falta de preparação cultural, o não reconhecimento de si mesmas como um vasto organismo vivo e uno, torna-as incapazes de levar a sua obra mais além da destruição do passado; impossibilita-se de proceder à construção da ordem nova que a sua revolta preparou.

E então dá-se, no dia seguinte ao do triunfo, a sua abdicação, num grande gesto de renúncia - essa obra de reconstrução, é um novo grupo, uma nova classe, mas não a colectividade inteira, que a vai empreender sob a égide da bandeira que presidiu à vitória.

Esta compreensão levou-o a empreender muitas actividades destinadas precisamente a aumentar o nível cultural do povo. A dedicação desde cedo ao trabalho da Universidade Popular foi uma das formas de procurar colaborar para conseguir esse objectivo.

Do mesmo modo, esteve presente ou liderou várias tentativas de criação de uma editora ou uma revista, como ferramentas para esse objectivo da divulgação cultural. Infelizmente essas tentativas nunca foram coroadas de êxito.

No contexto da Universidade Popular, Bento de Jesus Caraça realizou várias conferências sobre variados temas, e organizou séries de conferências ou cursos curtos com muitos oradores de elevado nível. Essas realizações eram feitas em colaboração com vários Sindicatos e Associações de Estudantes e tinham sempre um alargado público atento e militante nessa conquista da cultura.

Bento de Jesus Caraça profere, sob a bandeira da Universidade Popular, conferências em vários sindicatos, incluindo o Sindicato do Pessoal do Arsenal do Alfeite. Aí deve ter conhecido Bento Gonçalves, trabalhador daquela instituição da Marinha e à altura já Secretário Geral do Partido Comunista Português.

Em 1935, Bento Gonçalves, preso pela segunda vez, estava detido em Angra do Heroísmo antes de ser transferido para o Tarrafal em Cabo Verde onde viria a morrer por falta de assistência médica. Em Angra do Heroísmo esteve também preso na mesma época Manuel Rodrigues de Oliveira também membro do PCP e com experiência de jornalismo.

Num estudo de Pedro Pereira Leite, Mercadores de Letras — Rumos e estratégias dos editores e livreiros na divulgação cultural durante o Estado Novo (1933 - 1974) baseado em entrevista com Francisco Rodrigues de Oliveira, filho de Manuel Rodrigues de Oliveira, e num texto de Ricardo Machaqueiro é referido o seguinte:

Na prisão de Angra, Manuel [Rodrigues de Oliveira] era visto em frequentes conversas com Bento Gonçalves que aí também esteve após a sua segunda prisão em 1935, e antes da deportação para o Tarrafal. A esse período de conversas, ocorrido entre Dezembro de 1935 e Fevereiro de 1936, atribuiu Manuel Rodrigues de Oliveira a gestação da sua futura editora. "Houve dois Bentos importantes na minha vida, ambos cruciais no percurso da Cosmos, um foi o Bento Gonçalves, o outro o Bento de Jesus Caraça. O primeiro entusiasmou-me a fazer uma editora, o segundo foi o obreiro empenhado que lhe deu forma" (Machaqueiro).

De outra fonte há sobre este assunto um testemunho de António Dias Lourenço:

Em Angra, Manuel Rodrigues encontrou-se com o Bento Gonçalves, já então conhecido como secretário-geral do PCP, e colocou-lhe uma questão: "Ó Bento - eu tenho umas coroas e não sei que lhes hei-de fazer. Está-me a custar perder aquilo de qualquer maneira... Tens alguma ideia da utilidade possam ir a ter?".

E o Bento Gonçalves respondeu: "Sim. Tu podes avançar com uma editora de livros virados para a cultura popular. Bem feitos, para passar as malhas do fascismo. E podes fazer uma coisa com grande expansão - cultural e revolucionária. E olha - a pessoa indicada para dirigir isso é o professor Bento de Jesus Caraça. Vais ter com ele - dizes que vais da minha parte - e pões-lhe esse problema".

Liberto, Manuel Rodrigues de Oliveira voltou ao continente e ao trabalho de jornalista no jornal Século. Poucos anos depois, depara-se a oportunidade de investir numa editora praticamente falida, a Editorial Cosmos, que renasceu com o nome Edições Cosmos. Os sócios da empresa, para além do próprio Manuel Rodrigues que assumiu a condução efectiva da editora, eram Manuel Frois Figueiredo, antigo tesoureiro do jornal A Batalha e António Duarte Costa, ajudante de guarda-livros do jornal O Século.

É precisamente Manuel Figueiredo que convida Bento de Jesus Caraça para uma reunião na editora em Novembro de 1940 (ver J. Moreira Araújo: Biblioteca Cosmos um Projecto Cultural do Prof. Bento de Jesus Caraça, 2001, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa). Nessa reunião Bento de Jesus Caraça é convidado para a direcção de uma futura colecção de divulgação cultural. Dessa reunião que decorreu no dia 1 de Novembro de 1940, comenta Caraça:

Ambiente admirável! Aceito a direcção geral da colecção.

Uma semana depois apresenta uma proposta com o plano geral da colecção que é aceite pela editora. A Biblioteca Cosmos foi um dos projectos mais importantes de Bento de Jesus Caraça. que assumiu o lugar de director da colecção com grande dedicação e profundo envolvimento.

No primeiro número da colecção, Bento de Jesus Caraça expõe os (seus) objectivos para a Biblioteca Cosmos:

Podemos resumir nestas poucas palavras os [intuitos da Biblioteca Cosmos] — dar ao maior número o máximo possível de cultura geral, tornar acessível a todos aquilo que as condições materiais de vida e as necessidades profissionais da especialização tornam sempre difícil, e por vezes mesmo impossível, adquirir — uma visão geral do mundo, mundo físico e mundo social, da sua construção, da sua vida e dos seus problemas.

Quando falamos em tornar acessível, entendemo-lo de duas maneiras — pelo preço dos volumes, o qual será tão baixo quanto possível, e pela forma de tratar os problemas, que será simples, concisa, em linguagem ao alcance de todos.

Procurará realizar-se a síntese destas duas exigências — simplicidade máxima na forma de exprimir, rigor máximo na forma de expor. Obra de vulgarização, procurará sê-lo no sentido alto do termo — aquela vulgarização que não abaixa nem deturpa, que traz ao nível do homem comum o património cultural comum.

Tal directiva procede duma determinada maneira de encarar a civilização, no seu estado presente e no seu desenvolvimento através dos tempos.

Já uns anos antes, em 1938, numa recensão crítica ao livro de Albert Einstein e Leopold Infeld, A evolução da física, Caraça afirma:

[...]Um bom livro de vulgarização científica deve satisfazer as seguintes condições: a) deve ser escrito por quem domine completamente o assunto; b) o autor, realizando a condição anterior, deve, no entanto, ter inclinação filosófica; c) deve além disso, ter sempre em vista, ao escrever o seu livro, a natureza do público a que se dirige — público não especialista, mas com um grau de cultura geral que permita um tratamento elevado do assunto.

Consultando a lista de autores da Biblioteca Cosmos, percebe-se que Bento de Jesus Caraça, que conhecia bem a elite científica e intelectual da sua época, escolheu um conjunto de autores que claramente cumpriam os dois primeiros critérios. Quanto ao terceiro, quando os autores se desviavam e tendiam a esquecê-lo, Caraça, que analisava cada manuscrito cuidadosamente, impunha aos autores as alterações que considerava necessárias para cumprir o que tinha definido como objectivo. Podemos assim compreender que em muitos dos volumes da colecção está, ainda que não explicitamente referida, a colaboração de Caraça para que a colecção fosse aquilo que ele idealizou. Também a esse título, a Bibliotecac Cosmos foi a sua obra.

A colecção desenvolveu-se ao longo de sete anos, de 1941 até ao ano da morte de Bento de Jesus Caraça em 1948, ao longo de 145 números. correspondendo alguns a volumes duplos, no total de 114 livros com uma tiragem global de um pouco menos de 1 milhão de exemplares. Para a época, com o grau de analfabetismo em Portugal, isto representou um enorme sucesso editorial que muito ficou a dever à figura e ao prestígio de Bento de Jesus Caraça.

Neste sítio reune-se um conjunto de informações sobre a colecção, os autores dos diversos volumes e outros aspectos. Vai-se tentar ser o mais completo possível, deixando, porém abundantes ligações para outros sítios ou referências para livros e outros documentos que constituem o início de caminhos para exploração e aprofundamento.

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